Aperta o play pra viajar junto...
Aquilo havia de ser solucionado de alguma forma, o problema
lhe consumia as energias, lhe devorava todas as esperanças.
Mas o que fazer? Maldita hora que saiu de casa, foi morar
sozinha, cadê a mãe quando a gente mais precisa? De certo está dormindo, essa
hora deve estar sonhando ter uma filha que resolve as próprias pendências.
Porque isso que era. Parecia-lhe que a vida era toda feita
de pendências, a dieta que desandou, a reforma que lhe deixou só uma metade do
quarto com tinta nova, a receita do bolo de banana com goiabada que ficou de
pedir à avó. Tudo planejado, nada concretizado. As coisas andavam mais
embaralhadas do que se podia administrar.
Ah, mas que saco, eu precisava acender um cigarro. Eu, só eu
e essa noite de outono indecisa que parece implorar para o inverno que a deixe ser
mais fria, enquanto o verão lhe pede que seja brisa... Mas não tem nada nos
maços vazios, já estava prometido. Sem cigarros, no máximo nos finais de
semana, depois daquela cervejinha na madrugada de sexta feira, um último trago
que lhe transformava a promessa de parar de fumar em mais um de seus planos
fracassados. Melhor ir atrás de uma xícara de chá.
Abre armário, pega a chaleira sonoramente, bate a porta com
força, fazendo o resto das panelas empilhadas caírem de forma a esquematizar
uma armadilha ao próximo aventureiro de cozinha que ousar procurar por uma
frigideira.
Tic tac, tic tac. Esse tempo que não passa, essa água que
não ferve... Mas que merda, que chá o que, eu preciso é de algo doce. Procura,
procura, procura... Tinha de haver um daqueles bolinhos industrializados,
pacotinho de bolo Ana Maria, uma busca inútil por algo que não haveria ali,
isso ela já sabia... Esse é o mal de quem mora sozinho: não há de quem roubar
doces quando se precisa devorar fervorosamente uma boa dose de glicose, não
existe mais o rocambole de goiabada que o pai comprou pra comer quando chegasse
do trabalho.
Mas como se sua vida se bastasse naquilo que viesse pronto
da gôndola do supermercado... Vamos lá, se tem uma coisa que aprendeu bem nessa
vida foi cozinhar. Abra mais armários, bata mais portas, ai meu pé panela
maldita, quem foi o idiota que fechou esse armário e esmagou todas as panelas
desse jeito, eu preciso da assadeira que está lá no fundo.
Bolo de cenoura. Bota aqui, mede ali, joga tudo no
liquidificador. Eu quero coisa rápida, quero colocar no forno e ir sentar em
frente ao computador sem lavar a louça. Talvez pudesse acender um cigarro
enquanto espero. Se tivesse cigarros.
Forno pré-aquecido, assadeira untada, assar até o palito
sair seco. Não abrir o forno antes de dar 30 minutos, ou o bolo fofinho vira
sola de sapato. Abre, preguiça de pegar o palito, vai o garfo mesmo, bolo meio
cru, fiz uma cratera no bolo, já era previsto mas a teimosia teimou, fazer o
quê. Hora da calda de chocolate.
Tá aí uma coisa que nunca conseguiu se desvincular. Calda de
chocolate, daquelas bem ralinhas, que caem e penetram em cada furinho do bolo,
deixando aquela mordida com a surpresa de estar toda marmorizada pelo petróleo
açucarado no meio e só uma casquinha bem fininha e crocante por cima. Odiava
quando queria um bolo de cenoura e lhe vinham com aquele pedação laranja com um
brigadeiro mole por cima. Era bom, mas tinha gosto de bolo com brigadeiro. Não
tinha gosto de bolo de cenoura fresquinho que a mãe fez e guardou cortado em
quadradinhos na Tupperware em cima do fogão, onde as formigas não costumavam
atacar.
Quarenta e cinco minutos, cravados, a mãe sempre dizia que
se passasse disso o fundo ficaria com aquela crosta beirando o queimado. Espeta
o garfo de novo, sai limpinho. Tira do forno joga a calda no bolo fumegante,
ela sabe que tem demasiado, mas mente para si mesma, entornando mais calda
naquele buraquinho já alagado.
Não tem coisa mais aconchegante do que pedaço de bolo
quente. Corta um pedaço e devora-o sentada no sofá. Três vezes.
Está farta, a barriga cheia. Talvez até enjoe durante a
madrugada. Mas o coração acalmou. Amanha de manhã a gente pensa em como vai
resolver aquele problema. Hoje o dia acabou em bolo. E isso nunca pode ser de
todo ruim.
Até se esqueceu da vontade de fumar. Levanta e resolve ir
lavar a louça antes de deitar-se. Por incrível que pareça, terminou algo
planejado. Fez, assou, comeu, sujou e lavou. Até as coisas mais difíceis podem
acontecer repentinamente, quando menos se espera.
Melhor deixar a mãe dormir em paz. Ela deve entender as
maluquices que sonha.
Nenhum comentário:
Postar um comentário